Damião Ramos Cavalcanti

Enquanto poeta morrer, a poesia haverá de viver

Textos


Conversa de barbearia


As barbearias da minha infância hoje sobrevivem apenas na periferia da cidade ou se transformaram paulatinamente em cabeleireiros, que, por sua vez, sofisticaram-se a ponto de prestar também o mesmo serviço dos “salões de beleza”. Esses salões eram exclusivos aos penteados e pinturas do mundo feminino e barbearia era negócio para homem. Somente nos últimos anos, esses ambientes começaram a receber anúncios de unisex. Um dos privilégios dos tempos de menino era podermos sentar na cadeira da qual se levantavam, às nossas vistas, o prefeito, o vigário, o juiz, o delegado; era sermos atendidos como essas autoridades e gente grande. Para ser sincero, o trato não era o mesmo. Já se sabia que Zé Pequeno não variava o nosso penteado, repetia sempre o “corte número zero” e, aos mais crescidos o número dois.

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as uma coisa sempre foi e continua a mesma: barbearia ou salão de beleza, o lugar continua sendo de muita conversa. O barbeiro, geralmente de língua afiada, é o carro-chefe. Puxa o bate-papo, confidencia segredo ou conta fuxico, com o tom de voz que caracteriza o assunto. Até Seu Euclides, barbeiro do Seminário, não era diferente; mastigava a saliva como se estivesse se preparando para um novo mote. Dizem que, nos sofisticados ou populares salões de beleza, as mulheres não deixam por menos: Ai de quem cair na lâmina daquelas tesouras.
Semana passada, decidi ir ao cabeleireiro que mais se parecesse com barbeiro. E lá encontrei um senhor, gordo e de estatura mediana, que fazia “barba, cabelo e bigode”. Tinha voz grave, de barítono. Falava sem parar, sem dar trégua nem para um pitaco do dono da casa. Era ele quem iniciava, prosseguia e terminava o assunto. Reiniciou a conversa, abordando política: - “Esse governo não tem o que fazer, está acoitando esse italiano só para atrapalhar a vida da gente. Dizem que matou muitos por aquelas bandas”.

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jeitei-me na cadeira de espera, como lhe sinalizando querer dizer alguma coisa. Pensei ilustrar a sua fala e quebrar o monólogo, citando outras versões. Numa revista, o acusado Cesare Battisti dizia-se inocente e confessava nunca ter ferido alguém e que teria abandonado sua facção política por discordar do assassinato de Aldo Moro. Tinha lido ainda que a França de François Mitterrand, ao contrário da de Sarkozy, deu asilo a esse mesmo refugiado e a outra companheira sua e que a Itália restou em silêncio, respeitando a soberania francesa. Por que somente com o Brasil “la cara patria” estava tendo tal reação? Vi também algum periódico alegar ser o atual governo de Silvio Berlusconi radicalmente de direita e que pretende prender, a qualquer preço, Cesare Battisti por ter sido radicalmente de esquerda. Li, além disso, que alguns brasileiros, inclusive ocupantes de postos elevados no atual governo, em tempos idos, asilaram-se na França. E que, por outro lado, aqui teriam julgado o pedido ideologicamente. Gostaria de pôr à discussão essas questões.

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as nada de poder interferir na conversa. Foi quando o senhor respirou e me deu tempo de, rapidamente, indagar: - A quem o caso desse asilado está atrapalhando tanto? Solenemente, o homem afastou a navalha da sua barba, olhou para trás, como se desejasse ver de onde partira o atrevimento da interrupção e respondeu pausadamente: - “Você acha pouco? É por causa desse cafajeste que talvez não haja o jogo do Brasil contra a Itália”.

Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 06/07/2010
Alterado em 06/07/2010


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