Damião Ramos Cavalcanti

Enquanto poeta morrer, a poesia haverá de viver

Textos


                                Um mundo sem milho

          Criança, mesmo à distância da conversa dos adultos, tudo ouve, tudo escuta. Foi numa dessas rodas de bate papo em que “Seu” Geraldo, pai de Lenilda, falou alto da carestia: “Será um São João sem milho, a seca tá braba;  pros lados do cariri, do sertão, não se vê um pingo de verde”. O menino, que brincava ao lado com tampinhas de pasta Gessy e Kolynos, não levantou a cabeça, mas tirou suas conclusões: imaginou um mundo sem roça, sem milharal, sem milho, sem verde, completamente cinza, como planeta inabitado.  
          Ele costumava diferenciar as festas, não pelos nomes, mas pelas coisas que via na rua: o carnaval, pelo “la ursa” fazendo medo ao pedir dinheiro a quem não tivesse medo;  a festa da padroeira, pelo pavilhão  montado na frente da sua casa; enfim, as festas juninas pelo aparecimento dos montes de milho na frente do Mercado, onde, dentro e fora dele, ao sábado, dia da feira da pequena Pilar, concentravam-se o maior número de pessoas da cidade e matutos vindos do campo, da redondeza. Pronto! Não haveria milho, tampouco festa; como comemorar São João, São Pedro e “Sant’Ana” com feijão seco ou sem milho verde?  Haja imaginações...
          O pior era a destruição do seu mundo. O dito pelo amigo do pai tinha cara de verdade, já era tempo dalgum sinal de milho. Lembrou-se dos sacos com mãos de milho verde que o pai sempre ganhava naquele período chuvoso, quando desciam, na calçada, no quintal, gordas tanajuras. Com esse presente, faziam-se milho assado e cozido, pamonhas, canjica, bolo, até farelo mole para os passarinhos caídos dos ninhos das mangueiras no sítio. Ficou triste ao ser sempre o  primeiro interessado pelo tradicional preparo das comidas juninas, ocasião  de  fabricar seus brinquedos. Via Maria tirar as palhas da espiga igual às lavadeiras, as roupas dos moleques para lavá-los nas águas do Rio Paraíba; colecionava as bonequinhas; guardava os cabelos das espigas como loiras perucas para as bruxas da irmã; arrumava as lagartas verdes separadas das marrons nos currais de sabugo; fazia-se de médico, tratando da espiga tida como doente por Maria. O tempo desfez a preocupação: chegou milho colhido às margens do rio Una, da fazenda do avô Ramos, na Una de São José. Contudo, os adultos ainda continuam a pensar que as crianças não ouvem; ouvem e escutam, ainda imaginam coisas esquisitas: um mundo sem milho...
Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 25/06/2015
Alterado em 26/06/2015


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